sábado, 6 de março de 2010

Amor Sem Escalas: Retrato da Nossa Época

Assisti ao filme "Amor sem escalas" e quis falar sobre alguns aspectos que me chamaram atenção nele. Primeiramente, eu recomendo, pois, apesar do título que dá a impressão de ser um mero romance, passa muito longe disso. Talvez seja um romance da vida real, da nossa era atual da pós-modernidade, marcada por acentuado individualismo, pela fragilidade e inconstância de laços afetivos. Momento propício para a presença de pessoas que se escondem do risco que é se relacionar com o outro.

A história tem como personagem principal - representado pelo ator super charmoso (e solteirão convicto, coincidentemente) George Cloney - um homem que vive viajando a trabalho para uma empresa cujo objetivo é demitir funcionários de empresas em que os chefes não têm coragem para tanto.

Só a partir disso, podemos refletir um pouco sobre como andam as relações trabalhistas na atualidade. Em outros tempos, em geral as pessoas trabalhavam na mesma empresa a vida toda, podendo seguir carreira e crescer profissionalmente. Agora podemos ver o quanto isso mudou, e as próprias políticas de recursos humanos consideram o funcionário que trabalha na mesma empresa há muito tempo como obsoleto.


Hoje, é valorizado o empregado que está disposto a correr riscos, que busca incessantemente a informação e a inovação, mudanças, e não se fixa a qualquer emprego que seja, sendo este trabalhador chamado de dinâmico, empreendedor, corajoso.

Também podemos lembrar da crise financeira que atingiu todo o mundo há pouco tempo atrás e que fez muitos trabalhadores de várias partes do mundo perderem o emprego. Podemos lembrar da lógica capitalista de explorar o máximo o funcionário e só pensar no bem da empresa. Infelizmente, essa é a lógica de hoje. Se não está satisfeito, o trabalhador que se vire e procure outre coisa. Afinal, - o propalado discurso - "o que mais tem é gente querendo trabalhar".

O mundo do trabalho se torna cada vez mais competitivo e as pessoas, descartáveis. O que importa é produção, o lucro, e isso muitas vezes à custa de um enorme sofrimento do trabalhador.

Voltando ao filme, a vida desse homem chamado Ryan também revela outros aspectos que podemos observar na vida contemporânea. Ryan se sente feliz por viver nos aeroportos, por não ter - o que para ele é considerado um peso - uma família, um lar, com o que se preocupar. Ao ser questionado pela irmã no celular se não se sente sozinho, Ryan responde de um aeroporto: "Ora, estou cercado de gente."

Podemos pensar o quanto vemos isso nas relações humanas. Uma multidão de pessoas anônimas, cercada por gente , mas no fundo profundamente sós. E às vezes sem mesmo fazer questão desses vínculos. Para quê? É mais fácil conversar pela internet, é mais fácil se esconder por trás de apelidos e fingir ser outra coisa. Tudo é tão volúvel, mutável, para que correr o risco de sofrer? Jovens que só se relacionam com outros em boates escuras, com som alto, trocam carícias, até chegam a ter relações íntimas, e podem nem saber o nome do parceiro. Para quê? Tudo é tão mais fácil assim. Usar e jogar fora. Descartar as pessoas como se fossem objetos de uso e não, pessoas. Para quê correr o risco de ser deixado, criticado, de sofrer por amor? É a "vida líquida" sobre a qual tanto teoriza o sociólogo Bauman.

É claro que nem todos estão totalmente nessa de fugir de relacionamentos, contudo podemos ver que de alguma forma essa lógica individualista da atualidade afeta a todos nós, de alguma forma. Não temos mais os parâmetros que tínhamos para nos apoiar, estamos mais sozinhos e mais à deriva, mais à merce do desamparo que é ser humano, numa sociedade individualista como a nossa.

Ao ter mudanças na empresa, Ryan se depara com a tecnologia vindo tornar mais impessoal ainda seu trabalho. E por consequência, terá que se questionar sobre sua própria vida, pois não dará mais para usar a mesma fuga que usava.

Tive uma professora que dizia que todos nós precisamos de "ilhas de esquecimento", ou seja, de coisas que possam nos fazer esquecer do quanto a vida é dura e difícil. Essas ilhas de esquecimento podem estar no trabalho, nos relacionamentos, em atividades artísticas, religiosas e esportivas, ou onde quer que a pessoa escolha. Ryan de repente se vê sem essa proteção de sua "ilha de esquecimento" que era o trabalho, e, ao ter sua vida rotineira de trabalho mudada, se questiona sobre outras coisas que podem também ser importantes na vida.

Creio que apesar do individualismo característico de nossa cultura, há também um intenso desejo de algumas pessoas por se relacionarem, e um grande sofrimento quando não conseguem. Há uma bela cena no filme que mostra o quanto momentos importantes de nossa vida podem estar ligados a relacionamentos humanos. Ter vínculos não muda nossa condição existencial de ser humano em solidão, responsável por nossas vidas, nossas escolhas. Contudo, esses laços afetivos podem participar de momentos felizes de nossa existência assim como contribuir para que eles existam.

Apesar de todo o questionamento, Ryan não vai conseguir mudar toda a sua vida de uma hora para outra - o que o filme retrata muito bem. Assim como nenhum de nós. Até porque, tudo que vivenciamos está baseado em nossas escolhas e de alguma forma, ligado aos nossos desejos. Mas sempre dá para negociar com o nosso desejo, fazer mudanças gradativas, mudar o foco que damos à nossa vida, e não ficar tão apegado a nosso jeito inicial de ser. Ainda bem. Que venham as mudanças, a seu tempo, e que saibamos sempre nos questionar acerca do que realmente queremos na vida.

Um comentário:

  1. Ficou provado de que a promessa de que a tecnologia iria melhorar a qualidade de vida da humanidade é uma ilusão. Temos mais conforto mas as relações e o nosso estado emocional tem estado cada vez mais negativo...e nem nos damos conta.

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