sábado, 17 de abril de 2010

O Cuidador e o Cuidar-se


"E há que se cuidar do broto
Pra que a vida nos dê Flor
flor e fruto
" (Wagner Tiso/Milton Nascimento)


Após a formatura, a psicóloga fica seis meses à procura de trabalho. Seis meses que se tornam longos e intermináveis. Que vontade de exercer logo a profissão após tanto estudo e vontade!

E planos mudam, novas cidades se apresentam, novas buscas e desafios, e chega a hora tão sonhada: o primeiro emprego fixo como psicóloga, após passar num concurso público.
Muitas demandas, diferentes possibilidades de atuação, o mergulho na atuação profissional traz mundos inesperados e descobertas indizíveis, dificuldades e delícias, um mundo imenso de prática, para além do mundo das idéias da faculdade. Incompletude do saber e um contínuo desejo de saber mais! E de mudar!

Eu tinha pensando em fazer filosofia no segundo grau (e a leitura de filosofia no atual momento de minha vida vem com um novo significado e tem me aberto mais ainda novas portas de compreensão do humano!), mas quis fazer psicologia porque sabia que essa profissão me possibilitaria dar de cara com a prática da vida, pois eu precisava ir além das idéias. E dei de cara com a vida com muita intensidade! A gente encontra o que procura, não tem jeito, e a luta é dura para dar conta daquilo que a gente escolheu.

E após dois anos e meio no mesmo trabalho (onde pude mudar de setores e experenciar diferentes possibilidades de atuação - como parece pouco dizer apenas 2 anos e meio diante de todo o vivido!) senti que era hora de mudar, por alguns motivos.

E foi hora de dar adeus aquele emprego que tanto me tinha sustentado (psiquicamente) e tanto me fez crescer, e tanto me fez estar ciente dos meus limites quanto psicóloga e quanto pessoa. O quanto questões sociais atravessam nosso trabalho, questões coletivas, trabalhistas, comunitárias, culturais, o quanto precisamos de outros profissionais para compartilhar dificuldades, conquistas, trocar idéias, buscar novos caminhos e alternativas para nossos impasses profissionais, criar novas estratégias de atuação, realizar projetos, inovar. O quanto foi importante descobrir a importãncia de trabalhar em rede, de se surpreender com as novas possibilidades que nos trazem novas sensações e novos leques de atuação. E o quanto o mundo pós-faculdade é MUITO MAIOR do que podíamos imaginar!

E ao fazer o exame admissional para o novo emprego, descubro que minha pressão está alta. O médico sugere que eu procure um bom clínico geral.

Ato I
Na primeira consulta, acordo triste. Teve um espaço de tempo entre o antigo emprego e o novo que iria vir, e não deixei de ficar ansiosa.
O clínico que também é cardiologista, me recebe com expressão séria, mede a pressão e avalia o quadro.
Ao ver a sala de espera dele lotada imagino o quanto deve ser difícil ser um médico com tamanha responsabilidade com o compromisso com a vida de tantas pessoas. Posso entendê-lo melhor por eu já ter atendido tanta gente num dia só (bem cansativo!), e ser uma profissional da saúde numa profissão que também lida com o desgaste emocional que faz parte do pacote do tipo de trabalho que escolhemos.

Nesse meio tempo entre uma consulta e outra, vi aquela série "Dr. House" e fiquei pensando nesse curioso drama de ser um profissional que cuida do outro e ao mesmo tempo precisa de cuidados por também ser humano, tendo todas as complexidades, e fragilidades, que um ser humano tem. É uma série muito interessante, em que o personagem central é um médico brilhante que consegue, com o apoio de uma equipe, descubrir diagnósticos de casos difíceis (quase como se fosse uma investigação policial). O médico da série tem uma expressão facial séria(sem deixar de ter seu carisma) e é viciado em analgésicos, após ter sofrido um acidente e ter tido problemas numa das pernas.

Ato II
Segunda consulta. Na sala de espera, a recepcionista ainda não chegou e o médico chega e pede para nós (os pacientes marcados)esperarmos ela. Um casal de idosos chega sorridente e pela conversa com outro paciente, descobrimos que o casal são pais do médico. A recepcionista chega, anuncia o casal que entra na sala e fica pouco tempo.
Eu fui uma das primeiras atendidas (diferentemente da primeira consulta, de acordo com as marcações respectivas), e desde o começo o médico mostra-se mais simpático.
Pergunta se eu estou trabalhando mais perto (mais uma vez, vou trabalhar em outra cidade - ele lembra dessa informação), digo que não agora que comecei lá. O médico diz que dessa vez meu rosto estava iluminado - ele percebeu que a volta ao trabalho - dessa vez um novo - me fez muito bem. Espero ter menos estresse, menos pressão, quem sabe isso me ajude a controlar essa pressão que às vezes fica alta? O médico se abre. Diz que trabalhou 12 anos (ou 15, ou mais - não me lembro bem) numa emergência, viu de tudo, e teve um período, há cerca de poucos anos trás, que começou a ter pesadelos, acordar com palpitação, suores, estava insuportável, segundo suas palavras. Diz que começou a tomar antidepressivos e isso o ajudou.

Senti que essa situação foi um ENCONTRO, mais que entre dois profissionais, um encontro entre duas pessoas, que por mais perfeccionistas que possam ser, se deparam com seus limites e sofrem com o desgate trabalhista do dia-a-dia. Falei um pouco sobre o meu sofrer com o meu trabalho através do meu corpo, e ele expõs sua fragilidade com suas palavras. Ora, admitir que não somos onipotentes nem salvadores, além de realista, já é uma forma de cuidado com a gente mesmo. Que alívio saber que somos falíveis - e não apenas nós, nós e outros, e podemos nos comunicar sobre isso, construir uma ponte. Lidar com o humano nos torna mais humanos e conscientes de nossa limitação.

Afinal, nós que temos o compromisso de cuidar, também precisamos de cuidados. Também sofremos às vezes (e de alguma forma) com o sofrimento das pessoas que cuidamos. E precisamos de válvulas de escape para isso, de modos de aliviar nosso sofrer também por estar tão em contato com a fragilidade e limitação do humano. Atividade artística, atividade física, meditação, leitura, podem ser formas de nos aliviar um pouco dessa carga.

Lembrei-me agora da mitologia de Quíron, que Jung diz que é o arquétipo do curador. Quíron é um personagem da mitoglogia grega que passou por muitos sofrimentos e, mesmo tendo se tornado mestre nas artes curativas, jamais conseguiu tratar de sua própria ferida. Por isso, era conhecido como o Curador Ferido. Outro dia volto a falar mais desse personagem tão interessante.

Cuidamos dos outros, e às vezes nos esquecemos de nós. Mas em algum momento, algo em nós se expressa e sinaliza que precisamos de cuidados. Somos humanos, e um dia vamos adoecer de alguma forma, e a morte vai nos levar, como leva a todos, inclusive a pessoas queridas a nós. A finitude é uma das situações que une toda a humanidade.

Que até lá, tenhamos, além de ter cuidado do outro, cuidado de nós mesmos, e ter tido uma boa qualidade de vida.

"Quiron traz em si a ferida e a cura, pois à medida em que vivenciamos nosso sofrimento e desamparo, tornamo-nos mais inteiros e curados, porque mais sábios e mais humildes."

Um comentário:

  1. Querida,
    esse seu relato veio bem a calhar. Nós, psicólogas, às vezes incorporamos o papel de cuidadoras até dentro da família, e com uma filha pequena isso fico mais intenso. Mas, as pessoas têm muita dificuldade de entender que somos incrivelmente frágeis, e que precisamos muito de apoio e carinho quase incondicional em nossos momentos de fraquezas. Porque, além da fragilidade normal, carregamos o peso da responsabilidade pelo outro e da nossa própria cobrança para ficar logo bem e voltarmos à ativa... não é mesmo?

    Fiquei curiosa sobre esse novo trabalho! Mas, fico muito feliz que vc esteja buscando novas perspectivas. Sinto saudades!

    Grande beijo

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